A pequena invenção de um grande brasileiro
- Flavio Santos
- 8 de fev.
- 6 min de leitura
Uma das figuras mais importantes da medicina e da ciência do Brasil, o médico Manoel de Abreu é uma das personalidades científicas brasileiras totalmente ignoradas atualmente. Salvou milhares de vidas e outros tantos milhares de contos de réis e cruzeiros ao “contribuinte”.

Manoel Dias de Abreu nasceu na rua Barão de Itapetininga, capital paulista, em 4 de janeiro de 1892. Filho do português Júlio Antunes de Abreu e da sorocabana Dona Mercedes Dias. Não foi um dos alunos mais brilhantes no curso de Medicina, mas se formou com distinção, defendendo uma tese relacionando clima com civilização. Talvez, uma variação das antigas teorias “deterministas” sobre as causas do desenvolvimento ou atraso dos povos.

Após a formatura, em 1913, (em outras fontes, 1914), na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, partiu para França com a família. Retido em Lisboa pelo início da Primeira Grande Guerra, desembarcou na França em 1915. Trabalhou no Nouvel Hôpital de la Pitié, sob orientação de Gaston Lion e no velho hospital do Hôtel-Dieu, onde o Dr. Augustin Nicolas Gilbert era professor de clínica médica.

Certa vez, viu o mestre Gilbert auscultando um paciente na enfermaria. Ao final do procedimento, o médico vaticinou que não existia afecção pulmonar. Entretanto, após exame radiológico subsequente, o especialista constatou que o enfermo tinha um quadro gravíssimo de tuberculose. Essa experiência chamou a atenção de Abreu para a importância da radiologia no diagnóstico preciso da doença, na descoberta das chamadas “lesões mudas”.

Durante a Guerra Mundial, o front consumia recursos materiais e humanos. O laboratório de radiologia tinha poucos insumos e era comandado por uma pessoa sem formação. O Dr. Gilbert convidou Abreu para assumir a direção do setor. Abreu trabalhou, em 1917, no hospital mantido pela comunidade brasileira na França, o Franco-Brésilien, sob a direção de Paulo do Rio Branco, filho do famoso barão. Foi neste estabelecimento que iniciou seus trabalhos com radiologia e daí para a fotografia do monitor (ecrã) radiológico. Com base em muito estudo, em 1918, apresentou uma comunicação à Academia de Medicina Francesa sobre a densimetria dos campos pulmonares.

Acabado aquele grande conflito, trabalhou no hospital Laennec, de Paris, com o fisiólogo Edward Rist, onde adquiriu maior familiaridade com as radioscopias. Essa experiência gerou um livro, de sucesso internacional, lançado em 1921 (em outras fontes, 1920) e prefaciado por Rist, “Radiodiagnostique dans la Tuberculose Pleuro-Pulmonaire”, obra pioneira sobre a interpretação radiológica das lesões pulmonares.


Retornou ao Brasil em 1922. A tuberculose, a “peste branca", foi um dos problemas de saúde mais graves no país da primeira metade do século XX. No Rio de Janeiro, matava 5.000 pessoas por ano, na década de 1930. O preço para fazer uma chapa de raio-x era proibitivo para ser usado em larga escala. Os profissionais envolvidos eram poucos e eram submetidos a cargas repetidas. Além disso, as radiografias exigiam grandes espaços para o maquinário e outro tanto para a armazenagem dos resultados dos exames.


Entre os anos de 1935 e 1936, trabalhou nos hospitais Jesus, de Vila Isabel, onde chefiou o serviço de radiologia, e no antigo Hospital Alemão do Rio de Janeiro, da rua Barão de Itapagipe, bairro da Tijuca, onde retomou suas experiências. Anos depois, com a Segunda Guerra Mundial e a entrada do Brasil na luta ao lado dos aliados, o hospital passou a se chamar “Itapagipe” e, finalmente, em 1942, o Hospital Central da Aeronáutica.


Com o auxílio de insumos mais refinados e aparelhagem moderna, Manoel de Abreu conseguiu resultados satisfatórios em suas experiências, chapas com maior nitidez. O novo aparelho era, basicamente, uma máquina fotográfica que utilizava filmes de 35 milímetros na base pequena do aparelho e o monitor na base grande, separados por uma caixa em forma de pirâmide truncada, impermeável à luz.

O novo método foi apresentado à Sociedade Brasileira de Tuberculose em julho de 1936. Foi aprovado e indicado como processo de excelência para o diagnóstico da tuberculose. No mesmo ano, Abreu enviou os desenhos do aparelho para a Siemens, na Alemanha, e para a sede da General Electric, nos EUA. Ambas as matrizes das companhias ignoraram solenemente o projeto.

Contudo, em novembro de 1937, chegou ao Rio para uma conferência, na Academia Nacional de Medicina, o famoso radiologista alemão Dr. Hans Holfelder, da Universidade de Frankfurt. O alemão se empolgou com o invento e enviou o projeto para a matriz da companhia Siemens, na Alemanha. Conseguiu que se produzissem modelos que se espalharam pela Europa. O primeiro aparelho de abreugrafia do Brasil foi fornecido pela Casa Lohner (avenida Rio Branco, número 133), representantes da Siemens-Reiniger-Werke, de Berlim, famosa pela revenda de produtos da indústria alemã.


Abreu creditou o sucesso internacional do seu invento à interferência do Dr. Holdelfer. Infelizmente, o doutor alemão era um antissemita, um nazista convicto e um SS-Führer empedernido. Os exames radiológicos ajudaram a selecionar os membros da fictícia “raça ariana”, da SS e da juventude hitlerista. Holfelder foi o criador das “Tropas Roentgen” que conseguiram realizar milhares de exames na Alemanha. Ele morreu em 1944, em Budapeste. Tinha muitos admiradores no Brasil, principalmente na área da medicina.

Na rua do Resende, número 128, foi instalado o aparelho de “roentgenfotografia” (nome em homenagem ao descobridor dos raios-x, Wilhelm Konrad Von Roentgen), no ano de 1937, fornecido pela Casa Lohner, no Centro de Saúde número 3 da antiga Capital Federal. Esta unidade se tornou o primeiro centro de recenseamento torácico do país. Dali por diante, o exame podia ser feito em salas ventiladas e sob os cuidados de pessoas minimamente treinadas. Três tiras de filme da marca “Leica”, de 2,4 por 3,6 centímetros, produziram 200 exames. Para efeito comparativo, em 1937, cada mini chapa de roentgenfotografia custava módicos 150 réis. Já as antigas radiografias custavam 15 mil reis, a unidade.


O sucesso do novo exame atraiu a comunidade médica internacional para o centro de saúde da rua do Resende. Entre 1937 e 1938, o cadastro torácico universalizado se espalhou pelo Brasil, pelo continente sul-americano e pela Europa. Foi em 1939, durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Tuberculose, que, por sugestão do presidente do evento, doutor Ary Miranda, adotaram oficialmente o nome de abreugrafia. Em 1958, o presidente Juscelino Kubitschek criou o “Dia da Abreugrafia”, comemorado em 4 de janeiro. Até sua morte, o doutor Manoel de Abreu foi uma referência em sua área, sempre ocupando cargos de chefia e supervisão em órgãos de saúde da antiga capital federal.

Na década de 1970, já não era necessária uma grande triagem e exposição da população aos exames de abreugrafia, devido à diminuição drástica de casos. A OMS - Organização Mundial de Saúde - em 1974, recomendou o fim do uso da abreugrafia em massa. A doença passou a ser detectada pelo exame do escarro.

Manoel de Abreu era um fumante inveterado. Confessou que, em certa altura da vida, fumava de 4 a 5 maços de cigarros por dia. Morreu, ironia do destino, de câncer de pulmão, no Rio de Janeiro, em 30 de abril de 1962. Está sepultado em São Paulo, no cemitério da Consolação. Ainda em vida, apenas vinte anos após sua pequena grande inovação, já era um completo desconhecido dos brasileiros.
* Nas fotos: “BNRJ” significa Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
#abreugrafia #hospitaljesus #radiologia #tuberculose #roentgenologia #distritofederal #riodejaneiro #historiadobrasil #historia #memoria #fisiologia #vonroentgen #tísica #raiox #clínicamedica #hoteldieu #augustinnicolasgilbert #tisiologia #nazismo
Flavio Santos

Comments