“Os enforcados”, uma tragédia à moda da casa
- Cláudia Felício

- 4 de set.
- 3 min de leitura
Atualizado: 4 de set.
Por Cláudia Felício (roteirista, autora best-seller e crítica especializada em cinema)

“Não tem nada mais atual do que os arquétipos” dizia minha professora de Literatura Grega, na UFF. Em “Os enforcados” não é diferente e temos um suspense de consequência dos bons. Este é um exemplo de thriller que não precisa de monstros ou assassinos em série para fazer bonito, ele só mostra como a ambição pode virar uma corda em volta do pescoço. É isso que acontece no novo longa de Fernando Coimbra, estrelado por Leandra Leal e Irandhir Santos.
A história acompanha Regina e Valério, um casal que vive de pequenos sonhos de ascensão. Ele, funcionário de confiança dentro do universo do jogo do bicho. Ela, inquieta, sempre achando que merecem mais. De repente, aparece um “plano perfeito” para tomar o lugar do patrão, eles decidem arriscar tudo. O que parecia a porta de entrada para uma vida de luxo se transforma em uma espiral de escolhas cada vez mais sombrias, e cada passo dado cobra um preço maior do que o anterior. Quando a gente pensa “não pode piorar”, piora. Mas o que isso tem a ver com os arquétipos que eu falei no começo do texto? Tudo!
Essa trama ecoa um arquétipo antigo: o da ambição louca, desmedida, que move personagens desde tragédia clássica à literatura moderna. Medeia, de Eurípides, é traída e sua vingança devasta todos ao redor. Já em Macbeth, de Shakespeare, Lady Macbeth convence o marido a matar para alcançar o trono, e ambos são destruídos pela culpa. Em “Os enforcados”, Regina e Valério não querem a mesma coisa só que repaginada: eles querem status, querem grana e se deixam consumir pela hybris, a ambição que ultrapassa todos os limites.

O roteiro é do próprio Fernando Coimbra que fez uma escalada bonita de ser ver. Não se trata de descobrir “quem matou”, mas de acompanhar como a cada decisão os personagens se afundam mais ainda. A gente sabe que vai dar errado, o barato da tensão é esperar a hora em que tudo vai implodir. Os diálogos são ótimos, afiados, irônicos.
Nas atuações merecem destaque. Leandra Leal cria uma Regina que mistura estratégia e fragilidade: ela é capaz de sorrir para manipular e, segundos depois, deixar transparecer o medo de perder o controle, não tem como não pensar em Lady Macbeth quando ela instiga o marido. Leandra fez tão bem essa personagem que, em várias ocasiões, eu me peguei gostando da Regina, em outras, detestando essa mesma Regina; o que é o poder de uma atriz desse gabarito? Bravo!
Irandhir Santos foge do estereótipo do vilão mau e calculista. Seu Valério é uma bagunça de ser humano (como todos nós, aliás), é contraditório, é movido pela insegurança e por uma masculinidade frágil que não consegue resistir ao apelo da Regina. Ele é ao mesmo tempo cúmplice e vítima, e sua vulnerabilidade dá ao filme uma densidade que a gente não vê todo dia nesse gênero.
O filme também conversa com a literatura policial e de mistério. Durante o filme todo, tive a sensação de estar em um livro do Luiz Alfredo Garcia-Roza, onde o Rio de Janeiro, e suas particularidades que a gente conhece tão bem. No longa, vemos o jogo do bicho, as escolas de samba e uma cidade parece ser tão culpada quanto seus personagens. “Os enforcados” não é só sobre crime organizado. É sobre gente, sobre até onde nós vamos vai quando acreditamos que merecemos mais, quando decidimos fechar os olhos para o perigo. Coimbra mostra, com imagens potentes, que filmar suspense também é isso: encarar nossas próprias cordas, nossas próprias tentações, e ver o quanto de nós existe nesse casal que só queria “um pouco mais”.
No fim, a sensação é de que a corda aperta não só nos pescoços dos personagens, mas no nosso também. Porque não estamos assistindo a um conto distante em terra tão tão distante; estamos vendo, no cinema, um reflexo incômodo da nossa própria vida.

Cláudia Felício


Comentários