O Reverendo Monsenhor Lucas
- Flavio Santos
- 30 de mai.
- 8 min de leitura

Em novembro de 1948, a coluna “Para Todos” do jornal Diário de Notícias do Rio de Janeiro trazia nota jornalística sobre uma nova invenção criada nos EUA. O autor da nova engenhoca seria o Dr. Floyd Firestone, professor da Universidade de Michigan. Engenheiro acústico brilhante, foi o inventor do primeiro aparelho funcional para testes ultrassônicos. Mas a nota em questão não se referia aquele importante invento. Firestone anunciou a invenção de uma “máquina de escrever música”, elétrica. Fake news! Esse feito coube a um carioca nascido no bairro das Laranjeiras.

Nascido em 27 de outubro de 1891, no Rio de Janeiro, filho de José Joaquim Lucas e de Dona Basília da Conceição Lucas, o padre Lucas, como ficou conhecido, foi batizado e fez a primeira comunhão na igreja de N.ª Sr.ª da Glória do Outeiro. Entrou para o Seminário do Rio Comprido, em 1906. Era a época do prior e reitor do seminário, Dr. Victor Coelho de Almeida, que abjurou a Igreja Católica e se tornou presbiteriano. Um escândalo para a época.

Não sabemos a data exata e o motivo, mas aquele seminário fechou, provavelmente entre os anos de 1908 e 1909. Então, padre Lucas foi concluir os estudos no Seminário de Pirapora do Bom Jesus, estado de São Paulo, onde concluiu o curso de humanidades, em 1910. Recebeu a batina em 6 de março de 1911, em São Paulo, no Seminário Provincial, onde fez os estudos teológicos e filosóficos. Uma de suas tarefas, enfadonhas, era a de fazer cópias das partituras das músicas sacras. Naquele período, foi concebido e construído um protótipo da futura máquina de escrever música - o Mellographo. Tal qual aconteceu com outras invenções, existiam tentativas fracassadas de outros inventores.

Um ano depois, em 1912, conseguiu desenvolver uma máquina rudimentar, em madeira, com tipos feitos de zinco. Em 23 de março de 1914, solicitou a patente provisória ao governo federal, sendo registrada como o número 11.916. Concluído os estudos em São Paulo, foi para a cidade de Niterói, estado do Rio de Janeiro, e foi ordenado sacerdote em 16 de dezembro de 1917, na catedral niteroiense. Trabalhou como professor do seminário local. Sua primeira missa foi celebrada no dia 21 do mesmo mês, na igreja onde foi batizado, na Glória. Transferiu-se para a antiga localidade de Entre Rios (Paraíba do Sul), para onde fora nomeado coadjutor (ajudante) do vigário da freguesia da Matriz de São Sebastião. Ele era o diretor do Instituto Propedêutico de Paraíba do Sul. Finalmente, consegue o registro definitivo do aparelho em 1922, número 13.454. Era a época de grande mortalidade pela Gripe Espanhola, tempo que marcou sua memória. Voltou ao Rio de Janeiro, em 1923, para ser nomeado coadjutor pelo Cardeal Arcoverde, para a Matriz do Engenho Velho, na igreja de São Francisco Xavier.

O ano de 1925 foi um revival da invenção. Padre Lucas entregou o protótipo e o projeto para a oficina mecânica de João Frederico Richter e dos seus dois auxiliares, Carlos Meyer e Arlindo Ximenes, na rua General Câmara, número 124, para melhorias técnicas e estéticas.

No dia 9 de janeiro de 1925, padre Lucas fez uma apresentação no Círculo Católico do Rio de Janeiro, localizado na rua Rodrigo Silva, número 3. Assistiram ao evento maestros e engenheiros que ficaram impressionados com o aparelho. Nessa ocasião, defendeu o padre Francisco João de Azevedo, paraibano, como o verdadeiro inventor da máquina de escrever. Lembrou os feitos de outro padre, o brasileiro Bartolomeu de Gusmão, o “padre voador”, inventor do balão operacional.

No dia 7 de fevereiro, uma nova demonstração foi realizada na Casa Pratt, na rua do ouvidor, para representantes da imprensa e técnicos. Viajou para São Paulo no início de março de 1925 e também fez uma apresentação. Na ocasião, foi homenageado pelo movimento negro paulista. O Osservatore Romano noticiou o invento no dia 12 de abril daquele ano.


Para garantir, obteve a patente número 1.604.647 nos EUA em 25 de outubro de 1926. Ao todo, o invento custou 50 contos de réis ao padre. Mesmo pedindo ajuda ao então presidente Arthur Bernardes, não conseguiu nenhum auxílio. Chegou a receber uma oferta de uma firma estrangeira, de 700 contos, mas recusou, pois uma cláusula, indecorosa, incluía a renúncia à autoria do seu invento. Depois disso, a máquina foi esquecida.
O melógrafo é um aparelho destinado à impressão datilográfica de composições musicais, muito semelhante às máquinas de escrever. Seu teclado é dividido em dois, o da direita é o impressor, que fixa a nota no papel, e o da esquerda é o oscilador, que determina a posição da nota sobre a pauta. Entre os dois teclados está o pautador, que se encarrega de imprimir a pauta sobre o papel. Ao todo, eram 30 teclas para 60 sinais. Além disso, era possível escrever o texto da música. A máquina imprime caracteres da música gregoriana e polifônica, com cópias, por meio da utilização do papel carbono. As pautas são traçadas automaticamente com o retrocesso do “carro”.

Na sua vida acadêmica e docência, o padre Lucas foi professor do colégio Ottati, em 1929, de propriedade de Camillo Ottati Junior, antigo colégio Aldridge, da rua Marquês de Olinda, número 61. Por ser formado em Direito, na época do centenário da abertura dos cursos jurídicos no Brasil, 1927, foi oficiante de uma missa em ação de graças, organizada pelos formandos, na igreja da Candelária. Dois anos depois, prestou concurso para a cadeira de Noções de Direito Público e Privado, para a Escola Normal.



Em 1930, foi nomeado capelão da irmandade de N.ª Sr.ª de Lourdes, erguida na rua oito de dezembro, no convento dedicado a Santa, perto do morro de Mangueira, erguida pelo comendador, almirante e senador Índio do Brasil em homenagem à sua esposa, Dona Clarice Índio do Brasil. O terreno foi doado pelo Visconde de Ouro Preto, Affonso Celso de Assis Figueiredo. Na inauguração, que contou com a presença de Dom Sebastião Leme, o padre Lucas foi um dos vários ajudantes.

O antigo Código de Menores, precursor do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente - previa a construção de colégios especiais para adolescentes “vadios e mendigos”. Em respeito ao código, o juiz de menores da capital, Mello Mattos, mandou construir um internato, em 1931, na estrada velha da Pavuna, número 1124. O padre Lucas foi nomeado professor de Moral e Religião da instituição.

A igreja de São Tiago de Inhaúma foi construída em 1684, em substituição à capela antiga, dedicada ao mesmo santo. Da jurisdição da matriz, fazia parte o atual subúrbio da Leopoldina e as ilhas da Baía de Guanabara. Inhaúma era um importante porto de escoamento de produtos do interior. No final da década de 1920, a matriz se encontrava em ruínas, com escoras sustentando o altar. Padre Lucas é nomeado pároco da igreja de Inhaúma, em 1931, quando tirou a paróquia do ostracismo e desenvolveu importante ação social paroquial. Passou a morar na rua Padre Januário, número 80.

Organizou a primeira romaria paroquial ao novo monumento do Cristo Redentor, do alto do morro do Corcovado, em dezembro de 1931. Cerca de 400 pessoas assistiram à missa no alto do morro, celebrada por padre Lucas.

Como presidente da Comissão de Melhoramentos de Inhaúma, encontrou-se com autoridades. Visitou o interventor Pedro Ernesto, em 1934, e convidou para um cafezinho na casa paroquial, em 1937, o prefeito Henrique Dodsworth. Como resultado, ruas foram alargadas, praças foram urbanizadas e desenvolvidas ações sociais para os necessitados.




No final da década de 1930, o Colégio Paula Freitas deu posse ao padre Lucas como novo catedrático de Latim. Ao mesmo tempo, o padre se tornou Assistente Eclesiástico do Conselho Metropolitano dos Escoteiros Católicos. Como um dos licenciados, celebrou missa na igreja da Glória pelos formandos da primeira turma de Filosofia da antiga Universidade do Brasil, em dezembro de 1942.



Em dezembro de 1943, foi transferido para a paróquia de N.ª Sr.ª da Conceição, da Tijuca. Com seu espírito irrequieto, iniciou a reconstrução arquitetônica do prédio, começando pela fachada do templo. Da mesma forma que em Inhaúma, fez grandes obras sociais nas favelas do entorno da chamada “grande Tijuca”.
Em 1951, recebeu o título de monsenhor, pelo Papa Pio XII. Foi administrador da Mitra Arquiepiscopal do Rio de Janeiro. Foi professor catedrático de Letras Clássicas da Faculdade Nacional de Filosofia da antiga Universidade do Brasil. Se aposentou em 1961, aos 70 anos, com festa no salão nobre, organizada pelos alunos e professores. Foi aprovado no concurso para a cadeira de Latim do Colégio Pedro II, em 1961. Os formandos de 1927, da Faculdade de Direito, turma Visconde de Cairu, repetiram a comemoração, na igreja da Candelária, 40 anos após, e convidaram o padre Lucas, novamente, para ser o celebrante. Em dezembro de 1967, comemorou o jubileu (50 anos) de sacerdócio.

Cidadão atento aos problemas sociais do mundo, porém anticomunista, foi empreendedor, professor, orador sacro, debatedor, colunista e inventor. Mais uma daquelas figuras que o brasileiro adora condenar ao ostracismo. Não há registro do dia da morte, do velório ou do local de sepultamento de Monsenhor Lucas.

Post Scriptum: gostaria de agradecer aos funcionários das paróquias de São Tiago e de Nossa Senhora da Conceição pelo esforço. Fiquei aguardando uma resposta da Arquidiocese do Rio de Janeiro sobre o local da “última morada” de Monsenhor Lucas. Infelizmente, até o momento, dia 28, parece que não houve tempo hábil para conclusão da pesquisa. Paciência. Faremos o acréscimo em caso de resposta futura.
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● ABNRJ: Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro;
● ANRJ: Arquivo Nacional do Rio de Janeiro;
● ABF: Acervo Brasiliana Fotográfica;
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Flavio Santos

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