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Revista do Villa

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Lee: será que não fui suficiente?

Por Cláudia Felício, escritora best-seller e traduzida, roteirista e crítica especializada em cinema



Quem me lê aqui sabe que não sou de escrever em primeira pessoa, mas assistir ao filme Lee foi para mim, uma jornalista de profissão e apaixonada por narrativas, uma experiência pessoal, sim. Lee Miller não é apenas uma personagem, ela é uma colega de profissão de outra época, uma mulher que entendeu, antes de muitas, que podia ser autora da própria história e não apenas personagem da história dos outros.


O filme é dirigido por outra mulher: Ellen Kuras e me atravessou pela delicadeza de mostrar essa virada: de musa para testemunha, de modelo admirada a fotógrafa que carrega a própria câmera como escudo e espada.

 

Assisti a um filme visualmente calculado e tecnicamente seguro, não tem exagero de nada. A diretora se ateve à história que, por si só, já é bem boa: a primeira mulher correspondente de guerra no jornalismo, e o mais pitoresco, credenciada pela revista Vogue. Temos um equilíbrio entre a grandiosidade e horrores da guerra e o íntimo da personagem que conta sobre sua trajetória. A fotografia de Paweł Edelman é um capítulo à parte: seus enquadramentos, quase sempre compostos com simetria, evocam a estética da própria Lee Miller, uma fotógrafa buscava enquadrar e compor a foto como era possível nas circunstâncias. Mas há mais que beleza, se você prestar atenção, vai ver que as cores e as texturas vão mudando de acordo com a jornada de vida da protagonista — do brilho cosmopolita das sessões de moda e da vida no sul da França ao cinza duro dos campos de concentração.

 

Do ponto de vista estrutural, o filme, às vezes, parece recair numa linearidade previsível. A narrativa abandona o estigma da musa passiva e apresenta uma mulher decidida, em rota de colisão com o papel social a ela atribuído. O filme se passa em três tempos: o primeiro numa vida linda antes da guerra, depois, durante a Segunda Guerra, onde ela efetivamente trabalha, na sequência, em 1977 com Lee sendo entrevistada por um rapaz sobre o que viu e fotografou na guerra. O que mais me tocou foi perceber que a força de Lee não está só no que ela viu e fotografou, mas no como decidiu olhar e afrontar.


Na foto a seguir, que ficou famosa, temos a Lee Miller real tomando banho na banheira do führer, depois de tirar suas botas de terra e esfregá-las no tapete, antes, limpinho.

Lee Miller toma banho na banheira de Hitler
Lee Miller toma banho na banheira de Hitler

Kate Winslet dá vida à personagem com uma precisão e humanidade arrebatadoras. Como mulher e jornalista, me vi em cada dilema dela: o medo, a impotência diante do horror, a coragem de continuar. Que atriz de recursos! Tive a impressão de que ela optou pela contenção, reservando os gestos maiores para momentos-chave. Suas nuances de expressão dizem muito mais que diálogos extensos poderiam dizer. Em especial, nos momentos de choque e incredulidade ao registrar o horror, sua interpretação atinge um realismo desconcertante.


Nossa eterna musa de Titanic constrói uma Lee sem heroísmo artificial; é uma mulher feita de dúvidas, contradições e escolhas difíceis. No final, descobrimos quem está fazendo a entrevista com ela e bate aquela culpa característica de muitas mulheres (começando comigo): “será que eu não fui suficiente?”

 

É impossível sair ilesa de Lee. O filme não se limita a contar a vida de uma pioneira, ele nos lembra o quanto é essencial, para qualquer mulher (e sobretudo para uma jornalista), ocupar o lugar de quem narra e não só de quem é narrada. Que sirva de exemplo para todos nós assumirmos nosso protagonismo sem medos.


 

Cláudia Felício


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