Homem com H
- Cláudia Felício
- 23 de mai.
- 2 min de leitura
Desde os primeiros minutos, a gente entende que não está diante de uma biografia comum. Até porque o longa passa longe de ser só a cinebiografia do Ney Matogrosso. É um gesto de resistência, um tributo ao inclassificável Ney Matogrosso e, de tabela, a todos aqueles que ousaram existir fora das normas.
Dirigido por Esmir Filho, o filme não é convencional com início, meio e fim, numa ordem cronológica; a estrutura é fragmentada, livre, igual ao Ney. Se o objetivo do diretor era provocar sensações, ele o alcançou com sucesso! Parece que a própria câmera aprendeu a dançar com um corpo que nunca se dobrou ao ritmo de ninguém. Esse corpo é interpretado com brilho gostoso por Jesuíta Barbosa, numa atuação tão arriscada como recompensadora.
Ele vai muito além da imitação, Jesuíta se desmancha para se refazer como Ney Matogrosso. Não tem nenhum momento que pareça um ator representando; há entrega total: os trejeitos, a dança, o olhar entre selvagem e doce. A gente se esquece de que é um ator em cena porque ele não está interpretando, Jesuíta ele está vivendo uma verdade, ele é a carne do filme.
A máscara usada nos Secos e Molhados, preta e branca, está presente na fotografia que transita entre sombras e luzes intensas, entre neon e penumbra.
Fica uma atmosfera que oscila entre o delírio e o íntimo. Cada quadro parece pedir ao espectador que olhe mais fundo, não para ver a cena, não, mas para sentir.

O roteiro, inspirado na biografia escrita por Julio Maria, também evita o didatismo chato. Em vez de explicar quem foi o Ney Matogrosso, ele nos convida a conhecê-lo por dentro: um menino calado do interior, um adolescente sufocado e aí um artista que explode em palco como uma figura indomável. Parece que as passagens com Secos e Molhados, por exemplo, são menos uma reconstrução histórica e mais um ritual de nascimento do próprio Ney como esse artista gigante que ele é.
A trilha sonora funciona como espinha dorsal da narrativa. Mais do que pontuar emocionalmente as cenas, ela serve como fio condutor. Não sou das maiores entendedoras de música, mas tive a impressão de que elas estão na voz do Ney, mas com algum tipo de mixagem. Aliás, as canções são outro capítulo à parte. “Rosa de Hiroshima”, “Bandido corazón”, “Sangue latino” são todas inseridas com precisão emocional e respiram com os personagens. As performances são lindas!

“Homem com H” não deixa de ser um gesto político. E acho que, talvez, essa seja sua maior força: o filme nunca grita, ele sussurra com firmeza, canta bonito no ouvido de quem assiste. Ney Matogrosso nunca nem precisou discursar; seu corpo já era grito. Ao acompanhar sua jornada de reinvenção e resistência, o longa mostra dois retratos: um é o do Brasil que quis calar sua voz e o outro é do artista que nunca se permitiu silenciar.
Ao sair da sala de cinema, algo muda, dá um estado de liberdade. A gente respira mais fundo, sente mais, se permite mais. Porque esse filme, como é o Ney, não pede permissão para existir. Ele simplesmente existe, metendo o pé na porta, mas com toda a doçura.
Cláudia Felício
(escritora best-seller, roteirista e crítica especializada em cinema)

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