Entrevista: Flavia Fabbriziani (Artista visual)
- Chico Vartulli
- 22 de jun.
- 6 min de leitura
Entrevista com a artista visual Flavia Fabbriziani:

1- Olá Flavia! A sua exposição “Nunca é para sempre” está em cartaz até o dia 26 de junho na Casa de Cultura Laura Alvim. Como se deu o processo de criação do projeto que você está expondo?
Tudo começou pela janela do ateliê. Essa observação da paisagem de fora que tantas vezes olhei e não enxerguei, ou não observei como deveria. Foi dali que veio todo material que eu precisava para iniciar o processo de uma produção intensa de obras inéditas que se desenrolou a seguir. Olhando atentamente percebi o que tinha nascido, morrido e “desmatelado” pela ação da chuva. A paleta de cores se impôs logo no início, confesso que num primeiro momento, quase relutei em fazer uma exposição com tantas telas verdes. E, quando comecei a série dos amarelos, precisei fechar as cortinas no início dos trabalhos, aquela exuberância verde me atravessava com muita força. Eu precisava amenizar aquela presença para entrar em contato com um outro movimento que desejava imprimir: o outono, os ventos. Trabalho com a pintura abstrata, mas nesta exposição, como meu curador Shannon Botelho observou: “há uma fricção entre a abstração e a cena figural” o que ele nominou de “quase miragens”. Não tenho interesse em dar conta do mundo visível, do que está fora, mas sim devolver à pintura esse encontro entre o que percebo no mundo e o que reverbera em mim. O que me move é esse fluxo entre o exterior e o interior, e como a pintura me responde na medida que avanço com o processo.
2- Qual é a questão central presente na produção artística dessa exposição?
Se tudo estava ali diante dos meus olhos, quase uma obra pronta, emoldurada pela janela, como é que eu não me dei conta? O tempo, essa presença silenciosa. E a chave foi a natureza, com seus ciclos inevitáveis, suas transformações constantes, e sua maneira de nos lembrar da finitude.
Ao observar a paisagem, ao olhar para fora, comecei a perceber também meus próprios ciclos, meus movimentos internos e tudo aquilo que costura a própria vida.
Na aceleração do cotidiano, muitas vezes nos afastamos disso. Entramos num ritmo descompassado com o que sentimos, e aí perdemos a capacidade de observar e de contemplar.
A série Ânima nasce também desse lugar, do desejo de nos recolocarmos no tempo certo das coisas, de estar no compasso, ainda que tenhamos que seguir em frente com nossas marcações, juntando as partes, com que temos ali.
3- Se nada é para sempre, você está argumentando que tudo se transforma, se modifica. Como você aplica essa afirmação ao campo das artes plásticas?
Quando pensei no nome da exposição me veio justamente estas duas palavras: nunca e sempre. Talvez devêssemos usá-las com mais parcimônia, já que são difíceis de sustentar ao longo da vida. Mas não é o que acontece, acabamos usando-as frequentemente. Quando colocadas na mesma frase, elas nos dão ideia de finitude. Você leva esta pergunta para um lugar muito interessante, porque este título é, na verdade, uma reflexão sobre a impermanência, não apenas das coisas materiais, mas também dos significados, das experiências estéticas. Eu entendo que as artes plásticas estão sujeitas as transfigurações simbólicas e culturais. É verdade que arte aspira à permanência, mas mesmo quando ela sobrevive fisicamente ao tempo, ela não permanece idêntica. As obras são lidas, recontextualizadas, relidas, se desdobram em novos sentidos. Nunca é para sempre é um convite a consciência da mudança, tão fundamental a própria experiencia humana e estética.

4. Como se deu seu interesse pelas artes plásticas?
Nasci numa família que adorava arte, e aí incluo as mais variadas manifestações. Meu pai, imigrante italiano, adorava literatura e pintura, minha mãe era musicista; e o irmão de meu pai foi pintor e escultor. Desde muito jovem, fiz dança, primeiro clássica, depois flamenco. Acredito que carrego até hoje a força do meu gestual desse período. Apesar de minha primeira formação não ser ligada diretamente à arte, ela nunca deixou de estar muito próxima de mim. Foi apenas na mudança de São Paulo para o Rio de Janeiro que pude estudar e me dedicar mais intensamente. Curiosamente inicialmente me voltei às obras sonoras, a pintura veio depois, com vários cursos no Rio e, posteriormente com uma residência artística fora do país. Diria que fiz um percurso bem diferente e longo até chegar aqui. O embrião nas artes plásticas está certamente, nessa família que me deu condições de vivenciar a arte em casa e também nos espaços públicos. Meus pais me levavam, desde muito pequena, a exposições, o que naquela época, não era tão comum. O fato de ter uma família italiana, também me ajudou nos períodos que passei na Itália, onde pude ter contato direto com a arte, sobretudo com a pintura, que sempre me encantou. Quando finalmente pude me dedicar totalmente ao ateliê, sabia que tinha que ser com a pintura. Trazia comigo um gestual forte e, na bagagem, uma paixão por tudo aquilo que tinha estudado e visto na arte.
5. Quais são suas referencias (teóricas e práticas) no campo das artes plásticas?
Antônio Bandeira, Joan Mitchell, Gerhard Richter, Christian Boltanski são artistas que, de maneiras diferentes, se tornaram referências para mim. Todos exploram, à sua maneira, questões que atravessam, o meu trabalho, a abstração, o gesto e o tempo.
Bandeira me toca pelo domínio e intensidade da cor; Mitchell pela liberdade do gesto, Richter me interessa pelas camadas, e sobretudo pelo controle e o acaso. Boltanski, embora siga por caminhos distintos, me interessa pela forma como trabalha memória e ausência.
Já no campo teórico, minhas referências passam tanto por pensadores, como poetas e filósofos que me ajudam a sustentar uma visão sensível e expandida da arte. Paul Valéry com sua reflexão sobre o pensamento criador, Fayga Ostrower, ao tratar a arte como forma de conhecimento e liberdade interior. Na literatura e poesia, com Fernando Pessoa e Mia Couto, encontro uma linguagem que acessa o que está entre o visível e o indizível.
Nesta exposição em particular, ampliei minha pesquisa a partir da leitura de “Sobre a brevidade da vida”, de Sêneca. Sua reflexão sobre o tempo como o bem mais precioso e ao mesmo tempo o mais desperdiçado, se revelou tanto no processo de observação, contemplação, quanto no ritmo e no gesto presentes em cada pintura.
6. No seu ponto de vista, qual é a função social do artista?
Eu acredito que o artista provoca um certo deslocamento de percepção, quase como se criasse frestas de respiros. No abstrato, faço um convite ao público a se relacionar com algo que vai além, que escapa, que não é tão visível num primeiro momento. Num tempo em que tudo parece correr rápido, num mundo que nos exige respostas o tempo todo, acredito que o artista cria pausas, espaços de escuta, de reflexão e de abertura. Sem oferecer respostas prontas, ele provoca perguntas. E aí, reside uma das funções sociais do artista. Podem ser muitas outras, mas para mim, talvez a maior revolução de todas é sustentar a própria escuta interior, ser quem se é. Essa, talvez, seja a mais verdadeira e profunda forma de inclusão. O artista por meio do sensível, toca camadas que muitas vezes não se acessa no cotidiano. É neste lugar de abertura que temos a chance real de reencontrar algo essencialmente humano.
7. Como você define a arte?
Definitivamente ela não é uma definição fechada.
Para mim arte é expressão, é presença. É o lugar onde o invisível ganha ressonância. Não atende a uma função específica, ela abre caminhos, espaços, nos desloca, nos toca, nos afeta de alguma maneira. É o lugar onde, primeiro, se sente e, talvez depois, se compreende.
8. Quais são seus projetos futuros?
Quando finalizo uma exposição, sinto a necessidade de esvaziar. Fico muito envolvida no processo e preciso de um tempo para recomeçar. Gosto de estar no espaço expositivo, do contato com o público, é uma troca que não tem preço. Acho graça quando alguns se surpreendem por ver o artista ali, para mim é natural. Ouvir, conversar, perceber como o trabalho toca os outros, também alimenta a minha criação.
Adorei fazer a série Ânima, assim como a série Consanguineus, da exposição anterior que fiz em São Paulo. São trabalhos mais conceituais, menores em escala, mas que me deram um prazer enorme na elaboração. Nesta exposição, na sala do Ânima, tenho a alegria de contar com a obra sonora do Gabriel Guerra, que trouxe um outro corpo à experiência. De volta ao ateliê, pretendo retomar uma nova pesquisa, continuar explorando essas series mais conceituais. Há um projeto ligado à memória, que já me espera há algum tempo. Talvez eu comece justamente por ele.

Crédito fotografo: Miguel Sá
Chico Vartulli

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