Se você está com disposição para se conectar a uma história, vá ver As Polacas.
É um filme de uma potência emocional rara, equilibrando a densidade de um tema histórico sensível com uma narrativa visual sofisticada.
O longa é tocante não só por mostrar uma realidade dura, mas também por celebrar a capacidade humana de sonhar e resistir.
Ao retratar a opressão das mulheres dentro de um contexto histórico específico, o filme também lança luz sobre as estruturas sociais que temos até hoje e que perpetuam a violência contra o gênero feminino.
Na telona, temos a história baseada em fatos reais de mulheres judias trazidas para o Brasil no início do século XX com a promessa de uma vida melhor. Tudo mentira e acabaram sendo vítimas de uma rede de exploração sexual. A narrativa é ambientada no Brasil do início do século XX e mergulha no submundo da exploração sexual de mulheres judias, conhecidas como “polacas”. É necessário dizer que, linguisticamente “polaca”, na época, virou um sinônimo pejorativo para prostituta.
O roteiro não é linear e isso dá ritmo e agilidade para uma história super densa. A força do filme não fica por conta apenas de sua narrativa envolvente, mas também na forma como os aspectos técnicos potencializam a experiência do espectador. A fotografia é um show: tem uma paleta de cores que vai dos tons quentes da nostalgia e para os sombrios da tragédia; aí as imagens evocam tanto a beleza dos sonhos quanto a dureza dos pesadelos vividos pelas personagens. Os enquadramentos são íntimos, muitas vezes claustrofóbicos, refletindo o aprisionamento físico e emocional das protagonistas e isso nos coloca pertinho daquelas mulheres. É nessa hora que o diretor faz um golaço.
João Jardim optou por não usar os excessos dramáticos. Segundo o diretor, “ficamos bastante atentos na maneira de filmar, no desenho do filme para que ele fosse um pouco seco. Não que o longa seja seco, é uma história melodramática de uma mãe que tem um filho roubado, mas quisemos dialogar com a dor de forma realista. Então, nos momentos de violência, o filme tem um realismo que o tira do melodrama”.
Apesar de ser exposta, na tela, a dor crua, a direção deixou um espaço para o realismo sensível. É bom demais, como mulher, sentir que a luta da protagonista, que os sentimentos dela conversam com os meus. As conversas sussurradas, os gestos de solidariedade e até pequenos momentos de humor em meio à escuridão criam uma profundidade emocional.
Os diálogos são enxutos e carregados de subtexto conferem uma força poética à narrativa. Além dos diálogos, temos os silêncios e é aí que o público se conecta ao drama. A emoção decola e convida quem assiste a refletir em um tema que ecoa no presente: a exploração sexual da mulher. “O filme acaba se encaminhando para uma outra história que dialoga com um tema atual: a opressão da mulher. Quando esses elementos estão presentes, há um diálogo com o expectador de uma outra maneira, sai da fantasia e vai para outro lugar. Acho que esta é qualidade do filme: como ele está nos dois lugares no melodrama e no realismo” – disse João Jardim a esta coluna.
A trilha sonora é uma extensão da dor das personagens; ela se entrelaça com os silêncios que não são só meras pausas, mas parecem gritos sufocados por aquelas mulheres sem voz, invisíveis até para os que compartilham sua fé.
Há uma violência multifacetada, que se estende para além dos bordéis. As “polacas” judias enfrentam o desprezo da sociedade em geral e, de maneira mais cruel ainda, são rejeitadas pela própria comunidade judaica, que as vê como uma mancha na sua moralidade. Agora, lembre-se de que estamos falando do começo do século, época em que as mulheres já eram marginalizadas, então, essas “polacas” se tornaram párias duplamente excluídas – por sua condição de prostituição e também por serem mulheres.
A produtora executiva do filme, Iafa Britz, revela que sempre quis contar essa história. “Minha conexão vem tanto da minha descendência quanto da minha experiência como mulher judia. Minha avó era polonesa, assim como minha mãe é descendente de poloneses, e essa herança sempre despertou a vontade de me aprofundar nessas narrativas e histórias. A ideia de fazer o filme nasceu do desejo de dar voz às mulheres cujas histórias e jornadas foram apagadas”.
O elenco entrega performances impecáveis, com destaque para Valentina Herszage, que encarna a protagonista com uma vulnerabilidade e também com uma força que desarma que está assistindo. Cada lágrima parece ecoar dentro da gente e em centenas de outras mulheres esquecidas pela História.
As Polacas é mais do que um filme; é um convite à memória, um lembrete das feridas históricas que não devem ser ignoradas e ainda teimam em não fechar mesmo tanto tempo depois. Este é o tipo de cinema que não apenas se assiste, mas que se sente.
Cláudia Felício
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