A Casa do Pequeno Jornaleiro
- Flavio Santos
- 30 de jun.
- 7 min de leitura
“Tomamos liberdade
Num enredo de Carnaval
Homenageamos
A primeira-dama nacional
Porque compadeceu de um sofrimento
Daqueles que dormiam ao relento
Hoje vive feliz
E veem agradecer a primeira-dama do país”.
“No Brasil inteiro
Ninguém desconhece
A Casa do Pequeno Jornaleiro
Que a nossa primeira-dama
Um conforto criou
Compreendeu em sofrimento
Que nunca passou.”
(Escola de Samba “Depois Eu Digo”, [Acadêmicos do Salgueiro] - 1942.
Enredo: “Uma Noite Feliz”. Samba de Carivaldo da Mota [Pindonga] e Iracy Antônio Serra)
A história dos meninos vendedores de jornal é somente um dos capítulos de uma novela triste da nossa “Pátria mãe gentil”. Os problemas são os mesmos: pobreza, orfandade, maus tratos, alienação, desobediência e rebeldia. No “trabalho”, anunciavam nas esquinas disputadas da capital, aos gritos, as manchetes dos matutinos. Corriam e invadiam os bondes com os periódicos debaixo dos braços, sofriam quedas e se feriam, muitos eram atropelados. Entre uma jornada e outra, cometiam pequenos furtos, praticavam a mendicância, se envolviam em brigas e no infortúnio certo no malfadado “jogo das três tampinhas”, onde perdiam seus poucos cobres. No final do dia, nova correria, sujos e esfarrapados, era a vez de vender os jornais vespertinos. Os mais afortunados podiam voltar para casa, aos outros restavam as marquises das construções da cidade.

Sem a pretensão de dar conta de todas as iniciativas anteriores de resolução do problema, podemos mapear, na década de 1920, alguns marcos importantes. Em dezembro de 1925, o então secretário da ABI - Associação Brasileira de Imprensa, Aurélio Brito, propôs a criação de uma casa para o abrigo e educação dos pequenos vendedores. Apresentou o projeto no antigo Círculo de Imprensa, que contou com a presença do juiz de menores Dr. Mello Mattos.


Um mês depois, já em 1926, reuniu-se na sede do Círculo de Imprensa, um comitê organizado por veículos jornalísticos, para a criação de uma sociedade protetora dos menores jornaleiros. O Dr. Barbosa Lima Sobrinho ficou encarregado de estabelecer os estatutos da sociedade. Outros membros entraram em entendimento com a Societá Auxiliari della Stampa, importante órgão na venda e distribuição de jornais da antiga capital. Novamente, se fez presente o juiz de menores Mello Mattos, que sugeriu a idade mínima de 14 anos para a “profissão”. O juiz fez uma longa exposição do problema sob a ótica de seu tempo. Destacou o estudo do Dr. José Ingenieros, de 1908, “Archivos de Psychiatria”, comentado nas obras de Guache Roberto, “La delinquencia precoz” e de Noé Azevedo, “Dissertações sobre tribunaes de menores”. Ingenieros dividia os vendedores de jornais em três categorias: o “grupo industrial", que trabalhavam de forma honesta e regulamentada, com supervisão e apoio familiar. Os “adventícios” formavam um grupo intermediário. Menores que fugiram por maus tratos ou foram expulsos de suas famílias, por indisciplina extrema. Para eles, a venda de jornais é uma atividade episódica. Apostavam seus parcos proventos e recorriam a pequenos furtos, se necessário. O terceiro grupo, de delinquentes, misturava-se com o grupo dos “adventícios”, usavam a venda de jornais para encobrir sua atividade ilícita.


O assunto esfriou durante uma década. O jovem talentoso e articulista do jornal Diário da Noite, Austregésilo de Athayde, publicou um dos seus artigos na capa daquele jornal no dia 5 de outubro de 1936, dia do aniversário do periódico. No texto, o jornalista chamava a atenção para o grave problema do trabalho infantil e da criança desamparada, tema já abordado em artigos anteriores.

Sob inspiração daquele artigo, grande número de deputados, capitaneados pela doutora Carlota Pereira de Queiroz, feminista e deputada paulista, propôs um projeto (número 353), de 1936, concedendo auxílio de 100 contos à ABI para construção da “Casa do Vendedor de Jornal”. Por essa iniciativa, Carlota ganhou o apelido de “Madrinha dos Vendedores de Jornal”. Segundo o projeto, a casa receberia a subvenção de 100 contos anuais, pagos trimestralmente, em parcelas de 25 contos. O internato garantiria aos menores internos abrigo noturno, assistência médica e farmacêutica. Em outubro do mesmo ano, a Câmara dos Deputados considerou “objeto de deliberação”, dando parecer favorável. Em janeiro do ano seguinte, a Comissão de Finanças da Câmara deu aval ao projeto de financiamento.

Entretanto, o projeto sofreu dois reveses, sendo abandonado em 1937. O deputado Xavier de Oliveira pediu vistas do parecer. Segundo a opinião do Jornal do Brasil, Xavier, deputado cearense, teria usado o recurso protelatório, presumem, em represália aos jornalistas que o perseguiram com pequenas notas políticas desfavoráveis. No final do ano, em outubro, o deputado Luiz Sucupira deu parecer contrário ao projeto.

Dentro da política de criação de uma rede de assistência social, que incluía a LBA - Legião Brasileira de Assistência, criada em 1942, a ditadura Vargas abraçou a antiga iniciativa, por intermédio da primeira-dama, Dona Darcy Vargas. Em 25 de novembro de 1938, foi criada a Fundação Darcy Vargas, com cerimônia no Palácio Guanabara. A primeira-dama fez uma doação de 20 contos de réis. A partir de então, até a conclusão da obra, uma série de iniciativas populares ajudaram a arrecadar fundos para a empreitada.

Em 20 de janeiro de 1939 foi realizada a cerimônia de lançamento da pedra fundamental da obra, na rua do Livramento, bairro da Gamboa, Rio de Janeiro. Estavam presentes os diretores da Fundação Darcy Vargas, Romero Estelita, e Herbert Moses, presidente da ABI. O primeiro secretário da fundação, Rubens Porto, assinou a ata que foi depositada em uma urna, enterrada com várias moedas e jornais da época. A primeira-dama recebeu das mães de alguns dos pequenos jornalistas, um missal feito em ouro, com uma oração gravada em relevo.

Em primeiro de fevereiro de 1939, reuniram-se no Palácio Guanabara a diretoria da fundação e as construtoras pretendentes. De início, a previsão era de oito meses de obras. Apresentaram-se as sociedades anônimas, Companhia Construtora Pederneiras, Climério de Oliveira e Dourado e as firmas, Freire & Sodré, e Alcides B. Cotia.

A firma de Climério de Oliveira foi a vencedora. O contrato de construção foi assinado no dia 5 de abril de 1939, no Palácio Rio Negro, em Petrópolis. O prédio, com planta de Rubens Porto, deveria ter as seguintes características: grande hall de entrada com acesso ao refeitório “tipo americano” e ao salão de conferências, sala de cinema e de aulas, ambulatórios, consultórios médicos e dentários. Ainda no andar térreo, haveria um espaço de recreação e atividades esportivas para os não residentes.

No andar superior ficavam a capela e a residência dos irmãos educadores, dois grandes dormitórios com capacidade para 200 meninos, sendo um para menores de 12 anos e outro para de 14 a 18 anos. No terceiro andar funcionava a enfermaria e a lavanderia. Estavam ainda projetados mais dois dormitórios. O prédio tinha um custo estimado de 675 contos de réis. Sendo mais de 125 contos bancados pelo jornal A Noite. Enquanto a obra se desenvolvia, foi instalada em um dos andares do Palácio do Trabalho, no bairro Castelo, em junho, uma grande sala para confecção dos enxovais e uniformes dos menores jornaleiros.



No dia 9 de setembro de 1940, com um ano de atraso, foi finalmente inaugurada a Casa do Pequeno Jornaleiro, na rua do Livramento, zona portuária do Rio de Janeiro. Dona Darcy Vargas foi recepcionada pelos primeiros meninos internos, pelo cardeal Dom Sebastião Leme, os ministros Gustavo Capanema, Ataulpho de Paiva e Salgado Filho. Estavam presentes também os presidentes da ABI, Herbert Moses e o da Fundação Darcy Vargas, Romero Estellita.



Hasteada a Bandeira Nacional, alguns internos implantaram uma grande cruz na entrada do abrigo, que foi abençoada pelo cardeal Leme, assim como a imagem de Nossa Senhora da Saúde, presenteada pela esposa de Herbert Moses. A pintora Lilian Ortiz Monteiro ofereceu um quadro a óleo, retratando um pequeno vendedor de jornal. O cardeal fez um pequeno discurso, do qual foi destacado pela imprensa:
“Pequeno jornaleiro: aqui tendes o vosso lar; isto é vosso; tudo vos pertence. Nada vos faltará desde o conforto material ao conforto espiritual. E ali tendes vossa mãe!”
Ao dizer isso, apontou para Dona Darcy Vargas.



A profissão de vendedor de jornal juvenil desapareceu com o tempo. Na década de 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente, provocando uma mudança de perfil da instituição. Hoje, ela promove atividades culturais, educacionais e recreativas para crianças da região portuária do Rio de Janeiro.


ABNRJ: Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro;
ANRJ: Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
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Flavio Santos

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